segunda-feira, 5 de setembro de 2011

As últimas horas

Na casa não havia nenhum objeto que marcasse o tempo. Aquela senhora na simplicidade intuitiva de mãe sabia que só restavam algumas horas. Vinte e quatro talvez, trinta e seis como muito. Embora na casa houvesse muitos moradores (esposo, irmã e muitos filhos) a angústia que a mãe sentia a isolava dos demais a cada minuto passado. Os filhos pequenos ainda dormiam. O marido saiu para a lida na roça e a irmã foi atrás da benzedeira.

No único quarto da casa uma criancinha velava pelo dia e pela manhã. Não desejava o sol para si. Desejava o sol para ele fazer crescer a árvore de paina, na qual ela faria sua casinha para brincar. Naquele momento, porém não era o sol que a menina via, era a luz da lamparina que a febre mascarava.

A despeito do calor do sertão, do abafamento do quarto com dez viventes, do corpo em chamas da menina e da luz quente da lamparina aquela mãe sentia-se gelada. Principalmente o coração.

Seria a morte se aproximando?

Ainda de madrugada o pai saiu para o trabalho, não sabia definir o que era aquela sensação estar preso em casa estando livre no campo aberto. Era peso, era engasgo, era pensamento obsessivo, era querer olhar pra trás sem querer ver o que ali encontraria. Alguns poderiam dizer que era descaso, na verdade ele queria evitar o sentimento de impotência diante dos fatos, nem ao menos poderia dar a vida no lugar da menina. A fé deste homem era uma semente infértil.

A tia da menina saiu para buscar a benzedeira, com a cabeça cheia de pensamentos embora não conseguisse pensar em nada. Caminhou por horas até a casa da benzedeira que não estava. Soube a senhora benzedeira e parteira fora ajudar uma mãe a dar a luz. A tia pensou que era melhor fazer mais este esforço do que voltar para a casa e ver os olhos sem vida da irmã que refletia o futuro de sua caçula.

Chegando à casa da futura mãe, lá havia ansiedade pela vida. Uma comemoração com broa, biscoito de nata e leite aguardava as boa novas. Sem dificuldade não há alegria, a parteira disse que não poderia ir naquele momento que o parto seria difícil, já que parecia vir gêmeos. Soube pela tia que a menina de 5 anos em uma semana passou pelo processo de perda do apetite, apatia, desânimo, febre e prostração. A benzedeira que não podia dar assistência deu esperança através de uma simpatia: passar mel na testa da menina e cobrir com folha de palmeira. Quem teria mel em casa? Triste, porém disposta a não voltar sem solução a tia começou a bater de casa em casa na vizinhança...

Os irmãos da menina já estavam acordando, não entendiam muito bem o que estava acontecendo, por que a maninha não queria mais brincar? A mãe distribuiu as tarefas do dia, queria mantê-los ocupados para não responder perguntas. Sentia que se pensasse na palavra morte, a morte se materializaria. Preferia não pensar, para não acontecer. Desde que a menina adoeceu agiu assim. Mas estava tão difícil não pensar em morte... Primeiro olhou a bonequinha que há dias não brincava, depois olhou para aquele banquinho junto à mesa que há dias não se juntava á mesa. Pensava em ausência para não pensar em morte.

O pai sentiu sede. No justo momento da pausa ele viu os pássaros cuidando dos filhotes. Não tinha outra coisa a fazer voltou para casa, abraçou a esposa, nenhum dos dois ouraram chorar. Ele resolveu encomendar o caixão que só chegaria de barco dali a algumas horas.

Os irmãos sem dizer palavra com os pais ou entre si resolveram colher flores, por intuição pensaram que seria um bom momento.

A tia sentou na estrada e chorou. Falhou em encontrar mel. Voltaria pra casa com as mãos e a fé vazia. A menina estaria viva? Olhou para a saia florida e se lembrou dos lírios à beira do rio que tem um mel feito por pássaros. Quem sabe aquele mel daria alguns anos de vida? Ou daria mais tempo para procurar?

A mãe estava só com a sua querida caçula. As horas estavam se acabando afinal. Já não tinha mais forças para esperar, para driblar a falta de esperanças. Pegou a filha no colo, com respiração fraquinha. Merecia um último abraço. Merecia a última prece:

– Deus se for morrer, que morra. Se for viver, que viva!

Abraçou a menina com a força do amor de mãe, mas sem força nos braços. A menina soluçou num suspiro profundo, como se a vida fora devolvida, abriu os olhos e sorriu-lhe.

Naquele dia a menina olhou as flores e pensou que na sua casinha na paineira terá muitas flores e lírios do rio. O pai lhe disse que aquela caixa de madeira não poderia ser a caminha de suas bonecas, que voltaria pra cidade no dia seguinte. Na semana seguinte ela estava grata ao sol por ter feito sua paineira crescer. A mãe estava grata por ter sua família completa. Os irmãos gostavam de poder brincar com a menina, mas não agradeciam nada, ao contrário deixaram o pique-esconde com ela por várias vezes. E o pai estava grato por poder se preocupar em trazer o sustento pra casa.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Amor Próprio

A mão soltou o terço, o corpo soltou o espírito. Naquele segundo a alma se desfez. Quem diria que a jovem mãe morreria deixando dois filhos pequenos? Se existissem regras pra morte, quais critérios além da vida deveríamos preencher?
A jovem mãe já estava em processo de entrega quando se entregou ao câncer. O câncer levou um seio, depois outro... Levou os cabelos, a cor da pele. Sutilmente subtraiu o brilho nos olhos o sorriso. Para levar o prazer de cuidar da casa, o prazer de ler, o prazer de passar o batom vermelho, bastou que o câncer tivesse tirado o prazer de se olhar no espelho e o resto foi entregue... Não ser através do que se ama é não vida.
Existe uma lista de coisas tristes do diagnóstico à morte. Existem histórias esquecidas ao longo desses 20 anos. Por outro lado há exemplos e lições.
Minha mãe sofreu o câncer de mama uma época escassa de informações e repleta de preconceito.
A sua ausência deixou uma porção de amor sem objeto durante muito tempo. Até que passei a me amar, a desenvolver um cuidado por mim...
Amando-me posso amar as pessoas. O amor próprio nos torna aptos a gestos de amor. Um dos gestos que faço por mim é o auto-exame, uma vez por mês, sete dias depois a menstruação começar.
Um gesto que proponho a vocês mulheres é que declarem o amor a si mesmas fazendo o auto-exame. E quando o amor transbordar divulgue às mulheres de seu convívio. Aos homens proponho declarar o amor dessa maneira diferente.
Minha história começou com tristeza, com uma grande perda. Se há um final feliz pra toda história, quero partilhá-lo com vocês fazendo o auto-exame é uma das formas de aumentar o amor próprio.

domingo, 14 de agosto de 2011

Adultas e os sete pecados capitais - Inveja

Aurélio explica: Desejo violento de possuir o bem alheio.


Manchete:
Babá presa por torturar menor é linchada por populares ao comparecer a julgamento.

Boletim de ocorrência – histórico da ocorrência:
Empenhados pelo Copom comparecemos ao local onde em contato com a vítima, a menor L.A.M, acompanhada de seus pais que mostraram gravação em vídeo realizada duas horas antes, em presença da autora M.A.S, no qual exibe imagens de comprovada tortura contra a menor. A autora foi encaminhada a 7ᵃ DD sem oferecer resistência juntamente com o pai da menor e prova do flagrante.

Documento de identificação:
N° 102576 Emissão: 05/01/2008
Michele Aparecida Silva
Filiação: Selma Conceição Silva
Naturalidade: Sítio da Abadia – GO
Nascimento: 09/07/1991

Quando se viu sozinha na casa passou a mão delicadamente pelo lençol do berço, fechando os olhos, deu um sorriso. A criança ficara no andador, a princesinha da casa. Completamente alheia a sua função de babá subiu no berço e ali ficou deitada sentindo a pessoa mais feliz do mundo sonhando com os pôneis do móbile. O berço deu três estalos seguidos e o estrado quebrou. Com o barulho Lígia começou a chorar. Michele despertou do transe buscou cola instantânea na padaria e colou como pôde o estrado. Lígia se consolou sozinha.

Certo tempo depois Lígia estava mais magra, Michele contava aos pais que ela comia normalmente com muito apetite. Os pais nos dias de folga da babá comprovava o fato, a menina tomava quase um litro de leite por vez. O pediatra foi categórico: subnutrição! Mas Michele pouco se importava com esses detalhes. Nem mesmo se importava se sua carteira de trabalho ainda não foi assinada... Pensar o Direito não mudaria sua vida pra melhor, aliás até estragaria o sabor daquela mamadeira diária na parte da tarde. Ela não conseguia mensurar o prazer de tomar o leite na mamadeira, Lígia por sua vez conseguia relacionar aquela visão com a grande fome que sentiria até a noite.

Michele ainda fez mais. Pegou algumas fotos da família, cortou o rosto de Lígia e pegou suas fotos 3x4 e fez as substituições. Assim montou seu álbum com o dia de nascimento, batizado, visita dos avós, presentes, fotos registrando mês a mês o crescimento da pequenina, o primeiro aniversário... Lígia assistia tudo e quer por fome, quer por instinto infantil, comeu o próprio rosto nas fotos.

A babá gostava de brincar de boneca. E era nesse momento em que Lígia tinha um pouco de atenção. Afinal era uma das bonecas da família em que Michele era a mamãe. Era nesse momento em que Lígia tomava banho, era colocada para dormir – sem muito critério de hora e local, como é permitido nas brincadeiras. Lígia recebia a mesma atenção das demais. Ora era filhinha, ora irmãzinha.

No dia em que Lígia recebeu o primeiro ferimento foi numa dessas brincadeiras. Lígia pegou uma boneca e começou a bater nela. Michele não se conteve, bateu na menina também suas unhas marcaram a pele inocente.

Lígia nada tinha de fato seu. Os pais não a conhecia. Com um ano e três meses não falava nada. Para uma criança amor se prova com os sentidos. Seus brinquedos e confortos lhe garantia a inveja do ser humano com quem mais convivia. O mundo que conhecia com seus cinco sentidos se resumia na ausência.

Michele só era babá nos momentos em que os patrões estavam em casa. De tudo dava conta, mostrando muita alegria em estar ali. Reclamava que os pais da menina ficava muito pouco em casa e que a ausência prejudicaria o desenvolvimento da criança, como tinha visto num programa de Tv. Era verdade, sentia falta dos patrões. Amava vê-los em casa, embora ficasse muito irritada ao presenciar o carinho e cuidado com a menina. Para sentir-se aliviada, contava a si mesma histórias da sua infância. Infância muito melhor que a real.


Na sua identidade não consta pai declarado. A mãe trabalhava por dois. Da infância pobre que teve guardou o contraste dos contos de fadas com sua realidade. Aí resolveu acreditar que toda princesa passa por dificuldade antes de ter seu final feliz. No teatro da escola interpretou uma princesa, nunca se sentiu melhor.

Desde nova era discreta, ninguém sabia que se passava no seu mundo. Assim conforme combinado guardou segredo do encontro com aquele senhor que se apresentou como amigo do seu pai. Disse a ela seu pai a amava muito e que foi pra longe trabalhar. Mas que deixou com ele uma garrafinha mágica. Ele orientou Michele a escrever seus sonhos para o futuro, deixar na garrafa e entregar a ele uma semana depois, quando ele partiria em definitivo pra Amazônia. Ele levaria a garrafa e entregaria as princesas que cuidam dos rios e realizam desejos.

Michele escreveu que queria ser uma princesa. Desejou morar em uma bela casa com muitas bonecas. Pediu as princesas do rio que lhe permitisse conhecer gente importante como o Juiz Cabral que sempre doa doces para as crianças. E por fim pensou que não seria demais pedir que ela passasse na televisão, que sendo princesa todos conhecessem sua história.

A garrafa nunca foi lançada. O pai de Michele disfarçado de amigo do pai, não teve coragem de voltar e se despedir. Com o tempo a garrafa se perdeu.

Michele foi princesa no teatro da escola. Conseguiu morar numa casa linda cheia de bonecas trabalhando como babá. Ao ser presa conheceu juízes, promotores e advogados. Sua história passou na Tv. Porém muitos deixaram de conhecer sua história completa. Ela mesma perdeu o controle de sua história em algum momento quando deixou a inveja trocar o desejo de uma vida melhor pelo desejo de possuir o que era da menina.

E pensar que ela só desejava de verdade um final feliz.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Adultas e os sete pecados capitais - Gula

Wikipedia disse: desejo insaciável, além do necessário.


A gula não foi banida de nossa sociedade por conta da vaidade de se manter magro. Como todas as coisas evoluem assim a gula ganhou novas versões.

Na praça de alimentação de um shopping na capital estão três amigas que se conheceram justamente ali. Primeiro dividindo a mesa na hora do almoço. Depois guardando lugar umas para as outras. Depois desabafando sobre dificuldades no trabalho. No final de oito meses elas já sabiam que não tinham muito em comum entre si, mas era divertido acompanhar o dia a dia das amigas.

Suelem tem orgulho de cursar publicidade na melhor faculdade do país. Trabalha na agência de um tio bem sucedido e planeja altos voos na carreira. Vai ao salão duas vezes na semana. Mantém o cabelo liso e loiro. Malha três vezes por semana e corre nos finais de semana. Sempre está nas inaugurações das boates mais badaladas e por isso conhece e é conhecida de muita gente. Trata a si mesma como uma marca: aparência é fundamental.

Magali trabalha em uma agência de viagens. Pra ela o amor é como um escondidinho de camarão, às vezes está tão bem escondido que fica difícil de achar. Mas seus olhos castanhos, cabelos curtos e avermelhados e corpo mignon deixaram de procurar escondinhos de camarão, da mesma forma não procura o amor. O prazer não está apenas no amor ou na comida... Gosta de lutas e de tirar fotos.

Alexia voltou esse ano do Canadá. Queria mesmo ter ido pra Finlândia. Adora tecnologia, redes sociais e jogos do tipo ‘secondlife’. Não que estivesse insatisfeita com sua primeira vida, longe disso. A dança desde sempre cuidou de seu corpo, o chocolate cuida do seu humor. Assim como Suelem, aderiu à rotina do liso e loiro. Como trabalha em um tribunal sempre tem contato com pessoas importantes. Uma só vida agitada, contudo não lhe é suficiente.

Nunca tinham pensado no assunto até o dia em que fizeram um teste da revista que encontraram esquecida em cima da mesa. Resolveram testar: “qual é seu pecado capital?”. Tão diferente que eram entre si, jamais poderiam imaginar que as três fossem a gula. Justo a gula?

Bem se a revista estava certa ou não Magali admitia pra si que era compulsiva por compras. Já pensou em pedir numa loja para suas compras com o valor dividido em várias vezes, só para ter o prazer de digitar sua senha e ler “aprovado, retire seu cartão”. Sim, era prazer que aquela maquininha podia lhe dar...

Quero uma blusa branca. Que lenço lindo! Resolvi levar aquele par de sapatos. Acho que vou levar os dois. Adoro liquidação. Você divide? Tomara que tenham do meu tamanho. Comprar descarregava mais tensão que os socos que dava no saco de areia. Daí ser um pecado comprar mais do que precisa.... Com certeza é um exagero! Afinal ter o que deseja é a maior necessidade de nossos tempos...

Começou reagindo com um susto depois com risos, Suelem, por ser a mais autêntica das três, logo de cara assumiu que é compulsiva por carros. Não sai com nenhum cara que tenha carro com mais de dois anos.Numa balada não perde tempo com conversassobre política, sociedade, música ou qualquer coisa do gênero. Sua marca é muito valiosa! E cabe a ela manter-se em ascensão. A pedido das amigas relatou seus últimos encontros nos dois meses: Bravo,Vectra GT, C5, Peugeot 307, New Beatle, Focus, New Fiesta e Hillux...

Suelem e Magali esperaram que Alexia falasse algo, em que era gulosa afinal? Disse apenas que não conseguiria lembrar-se de nada. Que sua vida era muito equilibrada afinal. Num tom de brincadeira disse que absolvia suas amigas de seus pecados, afinal apenas estão vivendo seus dias... No final daquele dia, como em muitos outros, ficou um pouquinho no coquetel do trabalho, fez suas compras e não via a hora de passar a noite jogando. Ela nem se deu conta que sua gula era pela Alexia virtual e que aos poucos seu mundinho criado exigia mais dela, mais horas... Aos poucos deixou a dança, os contatos, os coquiteis... Se passar noites em frente ao computador jogando por sua vida virtual era gula de sua parte, não tinha consciência. Assim como não tinha consciência mais que era necessário e do que era além do necessário.

E assim temos novos pontos de vista do velho pecado que nunca se sacia:
* Gula = está conectada
* Gula = é transação efetivada
* Gula = é a nova carruagem das Cinderelas...

sábado, 23 de julho de 2011

A máquina do tempo de Einstein.

Sempre me considerei uma boa aluna. Não que tirasse as melhores notas, longe disso. Eu fui o tipo de aluna que tinha um prazer em aprender. Nada me fez gostar de Física, pouco sabia desta matéria. Não chegava a ser uma frustração, apenas uma questão a meu respeito que nunca consegui entender.
E aconteceu que em um minuto, como num passe de mágica, eu aprendi a Teoria Geral da Relatividade de Einstein. Não vou perder tempo (e ocupar espaço) colando o que facilmente pode ser consultado, mesmo porque traria informação e não conhecimento. Contudo cabe lembrar que as palavras-chave da teoria são: tempo e espaço. Parece que existe uma curva que relativiza tudo.
Podendo não saber nada de Física, talvez até fosse indiferente à existência de Einstein, aquele casal de idosos não só dominava a teoria, como também a usava para deslocar-se no tempo / espaço.
Vamos aos fatos:
Estavam no calçadão da Rua Halfeld, nem estava calor, apenas aquele nublado típico. Ele, podendo ter oitenta anos, vestia jeans e jaqueta de couro, era alto e magro. Ela também poderia ter seus oitenta anos (pensar nisso só me traz mais dúvidas) e usava saia nos joelhos, jaqueta de couro, cabelos soltos e arco nos cabelos. Era visível que ser arrumara para aquele encontro. Lá estavam, ele lhe comprou um sorvete de casquinha, não quis pra si. Pude ver que seu prazer era olhar a amada feliz por aquela prenda. Ela tomava o sorvete sorrindo. O encontro estava bom como o sorvete. Eles caminhavam lentamente no meio do caos habitual da cidade. Não por serem velhos, mas por estarem namorando. Não por serem velhos, mas por dominarem o tempo. Não por serem velhos, mas por ser o ritmo natural do amor que viviam.
Não há dúvida que eles viajaram no tempo. Talvez tenham vindo de anos a nossa frente para recordar o sabor misto do Mc Donald's. Talvez fosse o casal jovenzinho no passado visitando o seu futuro pleno de amor. Talvez seja apenas mais um casal comum de idosos que passa despercebido pela cidade. Seja qual for a hipótese correta, esse casal não faz distinção entre ontem, hoje e amanhã.
E com eles aprendi que sou um contínuo no tempo / espaço e que não há distinção entre o que fui, o que sou e o que serei. Principalmente, aprendi que se for para relativizar o que é a vida, escolherei o que me faz bem, relacionado com quem me faz bem, sem esquecer de estar bem vestida a altura da ocasião de viver feliz.

sábado, 16 de julho de 2011

Adultas e os sete pecados capitais - Ira

Segundo Aurélio: Desejo de vingança, cólera.

O pior já havia passado. Terminar o relacionamento que era admirado ou invejado por todos. O fato é que ninguém conseguia ficar indiferente ao vê-los juntos. Afinal seu ‘ex’ possuía as sete virtudes desejadas pela mulher moderna: beleza, estabilidade financeira, disponibilidade emocional, bom de cama, sensível, romântico e sabia dançar. Porém na vida a dois faltava cumplicidade, intimidade e o que ela mais detestava: havia nele um lado obscuro que ela nuncaconseguia desvendar. Não entendia os acessos de ciúmes, o repúdio às demonstrações de carinho ou mesmo o sua excessiva necessidade de espaço.

Nem as modernas virtudes, nem o casamento marcado sinalizado pela aliança de alguns milhares de Reais deram a segurança que necessitava para assumir o ‘final feliz’. Não era medo do eterno, era medo talvez daquilo que nunca pode entender.

Assim, aquele episódio da viagem a Porto de Galinhas decidiu por ela que era hora de redirecionar sua vida afetiva. Seu noivo em um ataque de ciúmes brigou com um turista que a chamara de gostosa. O fato de defender a honra da amada que deixaria qualquer mulher apaixonada, não suavizaram os gritos de que ela o pertencia, já que havia pagado caro pelos luxos que ela tanto gosta. Gritou ainda que era para respeitarem a ‘coleira’ que estava na mão dela. Não bastasse a apologia à propriedade, abraçou-a pelo pescoço e se foram.

A família a condenou, os amigos procuraram justificativas que a fizessem perdoá-lo. Ela não queria perdão, muito menos pensar. Queria apenas esquecer, superar e se um dia fosse possível, olhar para trás e rir do que aconteceu. Não segurou o ímpeto de vender o anel e comprar todo o valor em coleiras e mandou entrega-las com o bilhete: “Ótimas recordações, nenhuma mágoa”.

Em resposta, apenas uma ligação, uma frase: você vai perder alguém que ama muito e eu estarei por perto vendo você sem ação.

***

Com ou sem ameaça, voltaria a se apaixonar. Saíram, ficaram, tiveram medo do rumo que as coisas estavam tomando. Poucas brigas, muito amor.

Tudo caminhava de uma forma muito diferente do relacionamento anterior. Ela ajudava no crescimento profissional dele. Ele estimulava sua independência e sua personalidade.

Dizia-se feliz.

Dizia-se completa.

E aconteceu uma semana após de seu primeiro aniversário de namoro. Durante a semana toda não se viram. Suas novas atividades o mantinham ocupado. E ele sempre atencioso mandou entregar algumas flores para alegrar seu dia e perdoá-lo as ausências. Adorava seu jeito romântico! Já estava em frente ao prédio dele, ficou feliz em ver a luza acesa. Como tinha a chave, entrou e para não estragar a surpresa desceu um andar antes e subiu o outro pelas escadas, sem fazer qualquer sinal. Abriu a porta lentamente, colocou a cesta com o jantar para os dois com muito cuidado na mesa de jantar. Sem acender uma luz, sem qualquer barulho caminhou para o quarto.

A dor do engano não seria mais forte. Nem a dor de se sentir traída. Estava sem ação. Parecia não ter mais suas pernas. Deixou de existir, pois não pensava em nada. Só olhava, como em câmera lenta, seu namorado e seu ex-namorado juntos. Nem poderia chamar de surpresa. A ameaça se cumprira. A vingança em prato frio se cumprira.
(Baseado em fatos reais)

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Fiat Lux

Da revista sobre fitness e saúde passou a ler resolutamenteo jornal decidida a cumprir a primeira regra das ’10 dicas de viver bem’, que é sorrir mais. Para sorrir mais ignorou os editoriais, a seção mundo, política e economia... Até os avanços da ciência foram preteridos. Buscava pela parte dos quadrinhos. Porém não contava que o Garfield, o gato, fosse destruir sua resolução com sua maneira de sentir o mundo, resumida na frase: odeio segunda-feira!
Era segunda-feira e ela também odiava. Odiava ter que passar por mais do mesmo para garantir o sustento de seus pequenos luxos. Odiava ter a consciência que aquelas dez dicas de viver bem não mudariam sua essência, da mesma forma que as segundas-feiras são essencialmente melancólicas. Nem sabia mais se o seu sorriso era exercício facial ou social, sem esperar definição, vestia a simpatia e sorria...
Não pode acreditar quando o dia passou rápido. Chegando ao seu apartamento, silencioso e escuro até que aluz da sala revelou seus pequenos sucessos materiais: a decoração elegante, uma grande TV, um pôster emoldurado com montagem de várias fotos de sua viagem a Europa. Seu orgulho material sofreria ainda um golpe da segunda-feira: percebeu que algumas lâmpadas dos outros cômodos se queimaram. E sem ter outras lâmpadas de reserva, saiu pra comprar.
Na sua volta para casa, imagine? Fiat lux! Mais do que se poderia esperar de novas lâmpadas. Ao ver aquele homem em sua humilde bicicleta, porém totalmente customizada com suas fitas, rádio à pilha e sua cesta com três cachorros (vestidos respectivamente com as camisas: rubro-negra, verde-branca e verde e amarela), sua alma se iluminou. A segunda-feira não tem forças contra uma pessoa assim. E pela primeira vez em muito tempo conseguiu sorrir, um sorriso que não pede licença para chegar à boca, um sorriso que não pede licença para chegar à alma.
E assim quando voltou a sua casa já não era mais a mesma, já não percebia seus objetos da mesma forma.
Sua noite foi muito especial.
Tomou um banho longo e demorado ao som do Frank Sinatra. Permitiu-se ficar 30 minutos naquela cadeira relaxante e massageadora que comprara e até então não tinha aproveitado mais do que o teste de funcionamento. Concluiu que naquela noite especial em que se reencontrara, merecia pedir pizza e cerveja.
Por fim, decidiu escrever suas próprias dicas de como viver bem. Como se fosse um contrato consigo. Contrato a ser renovado dia após dia na medida em que ela fosse descobrindo como customizar sua felicidade.