quinta-feira, 30 de junho de 2011

Fiat Lux

Da revista sobre fitness e saúde passou a ler resolutamenteo jornal decidida a cumprir a primeira regra das ’10 dicas de viver bem’, que é sorrir mais. Para sorrir mais ignorou os editoriais, a seção mundo, política e economia... Até os avanços da ciência foram preteridos. Buscava pela parte dos quadrinhos. Porém não contava que o Garfield, o gato, fosse destruir sua resolução com sua maneira de sentir o mundo, resumida na frase: odeio segunda-feira!
Era segunda-feira e ela também odiava. Odiava ter que passar por mais do mesmo para garantir o sustento de seus pequenos luxos. Odiava ter a consciência que aquelas dez dicas de viver bem não mudariam sua essência, da mesma forma que as segundas-feiras são essencialmente melancólicas. Nem sabia mais se o seu sorriso era exercício facial ou social, sem esperar definição, vestia a simpatia e sorria...
Não pode acreditar quando o dia passou rápido. Chegando ao seu apartamento, silencioso e escuro até que aluz da sala revelou seus pequenos sucessos materiais: a decoração elegante, uma grande TV, um pôster emoldurado com montagem de várias fotos de sua viagem a Europa. Seu orgulho material sofreria ainda um golpe da segunda-feira: percebeu que algumas lâmpadas dos outros cômodos se queimaram. E sem ter outras lâmpadas de reserva, saiu pra comprar.
Na sua volta para casa, imagine? Fiat lux! Mais do que se poderia esperar de novas lâmpadas. Ao ver aquele homem em sua humilde bicicleta, porém totalmente customizada com suas fitas, rádio à pilha e sua cesta com três cachorros (vestidos respectivamente com as camisas: rubro-negra, verde-branca e verde e amarela), sua alma se iluminou. A segunda-feira não tem forças contra uma pessoa assim. E pela primeira vez em muito tempo conseguiu sorrir, um sorriso que não pede licença para chegar à boca, um sorriso que não pede licença para chegar à alma.
E assim quando voltou a sua casa já não era mais a mesma, já não percebia seus objetos da mesma forma.
Sua noite foi muito especial.
Tomou um banho longo e demorado ao som do Frank Sinatra. Permitiu-se ficar 30 minutos naquela cadeira relaxante e massageadora que comprara e até então não tinha aproveitado mais do que o teste de funcionamento. Concluiu que naquela noite especial em que se reencontrara, merecia pedir pizza e cerveja.
Por fim, decidiu escrever suas próprias dicas de como viver bem. Como se fosse um contrato consigo. Contrato a ser renovado dia após dia na medida em que ela fosse descobrindo como customizar sua felicidade.

sábado, 25 de junho de 2011

Quadros

Certos quadros são marcantes quer pela beleza, quer pela realidade. Ainda o são por retratarem uma determinada situação social. Estes quadros permanecem vivos na memória não só como referência gráfica, como também registro de sensações. Não consegui, contudo – reconheço minha limitação no assunto – encontrar um quadro que unisse as três características e que tenha feito refletir por tanto tempo como tenho refletido sobre o qual vou falar. A ideia de escrever o texto tem me perseguido por dias...
A despeito do mau cheiro, da aparência descuidada, da imagem de miséria, o que mais me repugna nos mendigos é a sensação de que não tem alma. Juro. Sinto isso. Aos meus olhos, são pessoas destituídas de esperança e destituídas de fé em Deus. Parece-me que passado, presente e futuro se resumem numa forma maldita de guiar a vida até a morte, e só. Eles representam tudo o que não se quer ser: ser sem estar na condição humana.
Daí a dificuldade de pintar com as palavras o quadro exposto em uma rua de Juiz de Fora. Era um homem de indefinível idade. Patrimônio, nenhum. Pertences, só o quê podia carregar consigo. Naquele momento, quantos sabiam da existência dele? Era final do dia. Creio que quase todos naquela avenida partilhavam do cansaço de um dia duro, da vontade de comer algo e de olhar a pessoa amada sentindo que a vida vale a pena.
Aquele homem também e ele me disse isso sem pronunciar palavra. Sentado naquela calçada, das suas coisas ele tirou um pão, sua ceia, seu alimento, sua sobrevivência. Um pão. Pão dividido em dois. Metade pra si. Metade pro cão que o acompanha. Comeram rapidamente ou pela fome ou pela escassez e depois aquele homem deitou abraçando aquele cão.
Ao que a princípio parecia alguém destituído de tudo, tem um cão. Tem alma, tem afetividade, sente fome, sente cansaço. Talvez creia em Deus. Mas aquele homem se sobressaiu a todos, talvez faça parte de um grupo restrito: daqueles que compartilham apesar das limitações da vida.