quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Amor Próprio

A mão soltou o terço, o corpo soltou o espírito. Naquele segundo a alma se desfez. Quem diria que a jovem mãe morreria deixando dois filhos pequenos? Se existissem regras pra morte, quais critérios além da vida deveríamos preencher?
A jovem mãe já estava em processo de entrega quando se entregou ao câncer. O câncer levou um seio, depois outro... Levou os cabelos, a cor da pele. Sutilmente subtraiu o brilho nos olhos o sorriso. Para levar o prazer de cuidar da casa, o prazer de ler, o prazer de passar o batom vermelho, bastou que o câncer tivesse tirado o prazer de se olhar no espelho e o resto foi entregue... Não ser através do que se ama é não vida.
Existe uma lista de coisas tristes do diagnóstico à morte. Existem histórias esquecidas ao longo desses 20 anos. Por outro lado há exemplos e lições.
Minha mãe sofreu o câncer de mama uma época escassa de informações e repleta de preconceito.
A sua ausência deixou uma porção de amor sem objeto durante muito tempo. Até que passei a me amar, a desenvolver um cuidado por mim...
Amando-me posso amar as pessoas. O amor próprio nos torna aptos a gestos de amor. Um dos gestos que faço por mim é o auto-exame, uma vez por mês, sete dias depois a menstruação começar.
Um gesto que proponho a vocês mulheres é que declarem o amor a si mesmas fazendo o auto-exame. E quando o amor transbordar divulgue às mulheres de seu convívio. Aos homens proponho declarar o amor dessa maneira diferente.
Minha história começou com tristeza, com uma grande perda. Se há um final feliz pra toda história, quero partilhá-lo com vocês fazendo o auto-exame é uma das formas de aumentar o amor próprio.

domingo, 14 de agosto de 2011

Adultas e os sete pecados capitais - Inveja

Aurélio explica: Desejo violento de possuir o bem alheio.


Manchete:
Babá presa por torturar menor é linchada por populares ao comparecer a julgamento.

Boletim de ocorrência – histórico da ocorrência:
Empenhados pelo Copom comparecemos ao local onde em contato com a vítima, a menor L.A.M, acompanhada de seus pais que mostraram gravação em vídeo realizada duas horas antes, em presença da autora M.A.S, no qual exibe imagens de comprovada tortura contra a menor. A autora foi encaminhada a 7ᵃ DD sem oferecer resistência juntamente com o pai da menor e prova do flagrante.

Documento de identificação:
N° 102576 Emissão: 05/01/2008
Michele Aparecida Silva
Filiação: Selma Conceição Silva
Naturalidade: Sítio da Abadia – GO
Nascimento: 09/07/1991

Quando se viu sozinha na casa passou a mão delicadamente pelo lençol do berço, fechando os olhos, deu um sorriso. A criança ficara no andador, a princesinha da casa. Completamente alheia a sua função de babá subiu no berço e ali ficou deitada sentindo a pessoa mais feliz do mundo sonhando com os pôneis do móbile. O berço deu três estalos seguidos e o estrado quebrou. Com o barulho Lígia começou a chorar. Michele despertou do transe buscou cola instantânea na padaria e colou como pôde o estrado. Lígia se consolou sozinha.

Certo tempo depois Lígia estava mais magra, Michele contava aos pais que ela comia normalmente com muito apetite. Os pais nos dias de folga da babá comprovava o fato, a menina tomava quase um litro de leite por vez. O pediatra foi categórico: subnutrição! Mas Michele pouco se importava com esses detalhes. Nem mesmo se importava se sua carteira de trabalho ainda não foi assinada... Pensar o Direito não mudaria sua vida pra melhor, aliás até estragaria o sabor daquela mamadeira diária na parte da tarde. Ela não conseguia mensurar o prazer de tomar o leite na mamadeira, Lígia por sua vez conseguia relacionar aquela visão com a grande fome que sentiria até a noite.

Michele ainda fez mais. Pegou algumas fotos da família, cortou o rosto de Lígia e pegou suas fotos 3x4 e fez as substituições. Assim montou seu álbum com o dia de nascimento, batizado, visita dos avós, presentes, fotos registrando mês a mês o crescimento da pequenina, o primeiro aniversário... Lígia assistia tudo e quer por fome, quer por instinto infantil, comeu o próprio rosto nas fotos.

A babá gostava de brincar de boneca. E era nesse momento em que Lígia tinha um pouco de atenção. Afinal era uma das bonecas da família em que Michele era a mamãe. Era nesse momento em que Lígia tomava banho, era colocada para dormir – sem muito critério de hora e local, como é permitido nas brincadeiras. Lígia recebia a mesma atenção das demais. Ora era filhinha, ora irmãzinha.

No dia em que Lígia recebeu o primeiro ferimento foi numa dessas brincadeiras. Lígia pegou uma boneca e começou a bater nela. Michele não se conteve, bateu na menina também suas unhas marcaram a pele inocente.

Lígia nada tinha de fato seu. Os pais não a conhecia. Com um ano e três meses não falava nada. Para uma criança amor se prova com os sentidos. Seus brinquedos e confortos lhe garantia a inveja do ser humano com quem mais convivia. O mundo que conhecia com seus cinco sentidos se resumia na ausência.

Michele só era babá nos momentos em que os patrões estavam em casa. De tudo dava conta, mostrando muita alegria em estar ali. Reclamava que os pais da menina ficava muito pouco em casa e que a ausência prejudicaria o desenvolvimento da criança, como tinha visto num programa de Tv. Era verdade, sentia falta dos patrões. Amava vê-los em casa, embora ficasse muito irritada ao presenciar o carinho e cuidado com a menina. Para sentir-se aliviada, contava a si mesma histórias da sua infância. Infância muito melhor que a real.


Na sua identidade não consta pai declarado. A mãe trabalhava por dois. Da infância pobre que teve guardou o contraste dos contos de fadas com sua realidade. Aí resolveu acreditar que toda princesa passa por dificuldade antes de ter seu final feliz. No teatro da escola interpretou uma princesa, nunca se sentiu melhor.

Desde nova era discreta, ninguém sabia que se passava no seu mundo. Assim conforme combinado guardou segredo do encontro com aquele senhor que se apresentou como amigo do seu pai. Disse a ela seu pai a amava muito e que foi pra longe trabalhar. Mas que deixou com ele uma garrafinha mágica. Ele orientou Michele a escrever seus sonhos para o futuro, deixar na garrafa e entregar a ele uma semana depois, quando ele partiria em definitivo pra Amazônia. Ele levaria a garrafa e entregaria as princesas que cuidam dos rios e realizam desejos.

Michele escreveu que queria ser uma princesa. Desejou morar em uma bela casa com muitas bonecas. Pediu as princesas do rio que lhe permitisse conhecer gente importante como o Juiz Cabral que sempre doa doces para as crianças. E por fim pensou que não seria demais pedir que ela passasse na televisão, que sendo princesa todos conhecessem sua história.

A garrafa nunca foi lançada. O pai de Michele disfarçado de amigo do pai, não teve coragem de voltar e se despedir. Com o tempo a garrafa se perdeu.

Michele foi princesa no teatro da escola. Conseguiu morar numa casa linda cheia de bonecas trabalhando como babá. Ao ser presa conheceu juízes, promotores e advogados. Sua história passou na Tv. Porém muitos deixaram de conhecer sua história completa. Ela mesma perdeu o controle de sua história em algum momento quando deixou a inveja trocar o desejo de uma vida melhor pelo desejo de possuir o que era da menina.

E pensar que ela só desejava de verdade um final feliz.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Adultas e os sete pecados capitais - Gula

Wikipedia disse: desejo insaciável, além do necessário.


A gula não foi banida de nossa sociedade por conta da vaidade de se manter magro. Como todas as coisas evoluem assim a gula ganhou novas versões.

Na praça de alimentação de um shopping na capital estão três amigas que se conheceram justamente ali. Primeiro dividindo a mesa na hora do almoço. Depois guardando lugar umas para as outras. Depois desabafando sobre dificuldades no trabalho. No final de oito meses elas já sabiam que não tinham muito em comum entre si, mas era divertido acompanhar o dia a dia das amigas.

Suelem tem orgulho de cursar publicidade na melhor faculdade do país. Trabalha na agência de um tio bem sucedido e planeja altos voos na carreira. Vai ao salão duas vezes na semana. Mantém o cabelo liso e loiro. Malha três vezes por semana e corre nos finais de semana. Sempre está nas inaugurações das boates mais badaladas e por isso conhece e é conhecida de muita gente. Trata a si mesma como uma marca: aparência é fundamental.

Magali trabalha em uma agência de viagens. Pra ela o amor é como um escondidinho de camarão, às vezes está tão bem escondido que fica difícil de achar. Mas seus olhos castanhos, cabelos curtos e avermelhados e corpo mignon deixaram de procurar escondinhos de camarão, da mesma forma não procura o amor. O prazer não está apenas no amor ou na comida... Gosta de lutas e de tirar fotos.

Alexia voltou esse ano do Canadá. Queria mesmo ter ido pra Finlândia. Adora tecnologia, redes sociais e jogos do tipo ‘secondlife’. Não que estivesse insatisfeita com sua primeira vida, longe disso. A dança desde sempre cuidou de seu corpo, o chocolate cuida do seu humor. Assim como Suelem, aderiu à rotina do liso e loiro. Como trabalha em um tribunal sempre tem contato com pessoas importantes. Uma só vida agitada, contudo não lhe é suficiente.

Nunca tinham pensado no assunto até o dia em que fizeram um teste da revista que encontraram esquecida em cima da mesa. Resolveram testar: “qual é seu pecado capital?”. Tão diferente que eram entre si, jamais poderiam imaginar que as três fossem a gula. Justo a gula?

Bem se a revista estava certa ou não Magali admitia pra si que era compulsiva por compras. Já pensou em pedir numa loja para suas compras com o valor dividido em várias vezes, só para ter o prazer de digitar sua senha e ler “aprovado, retire seu cartão”. Sim, era prazer que aquela maquininha podia lhe dar...

Quero uma blusa branca. Que lenço lindo! Resolvi levar aquele par de sapatos. Acho que vou levar os dois. Adoro liquidação. Você divide? Tomara que tenham do meu tamanho. Comprar descarregava mais tensão que os socos que dava no saco de areia. Daí ser um pecado comprar mais do que precisa.... Com certeza é um exagero! Afinal ter o que deseja é a maior necessidade de nossos tempos...

Começou reagindo com um susto depois com risos, Suelem, por ser a mais autêntica das três, logo de cara assumiu que é compulsiva por carros. Não sai com nenhum cara que tenha carro com mais de dois anos.Numa balada não perde tempo com conversassobre política, sociedade, música ou qualquer coisa do gênero. Sua marca é muito valiosa! E cabe a ela manter-se em ascensão. A pedido das amigas relatou seus últimos encontros nos dois meses: Bravo,Vectra GT, C5, Peugeot 307, New Beatle, Focus, New Fiesta e Hillux...

Suelem e Magali esperaram que Alexia falasse algo, em que era gulosa afinal? Disse apenas que não conseguiria lembrar-se de nada. Que sua vida era muito equilibrada afinal. Num tom de brincadeira disse que absolvia suas amigas de seus pecados, afinal apenas estão vivendo seus dias... No final daquele dia, como em muitos outros, ficou um pouquinho no coquetel do trabalho, fez suas compras e não via a hora de passar a noite jogando. Ela nem se deu conta que sua gula era pela Alexia virtual e que aos poucos seu mundinho criado exigia mais dela, mais horas... Aos poucos deixou a dança, os contatos, os coquiteis... Se passar noites em frente ao computador jogando por sua vida virtual era gula de sua parte, não tinha consciência. Assim como não tinha consciência mais que era necessário e do que era além do necessário.

E assim temos novos pontos de vista do velho pecado que nunca se sacia:
* Gula = está conectada
* Gula = é transação efetivada
* Gula = é a nova carruagem das Cinderelas...