segunda-feira, 5 de setembro de 2011

As últimas horas

Na casa não havia nenhum objeto que marcasse o tempo. Aquela senhora na simplicidade intuitiva de mãe sabia que só restavam algumas horas. Vinte e quatro talvez, trinta e seis como muito. Embora na casa houvesse muitos moradores (esposo, irmã e muitos filhos) a angústia que a mãe sentia a isolava dos demais a cada minuto passado. Os filhos pequenos ainda dormiam. O marido saiu para a lida na roça e a irmã foi atrás da benzedeira.

No único quarto da casa uma criancinha velava pelo dia e pela manhã. Não desejava o sol para si. Desejava o sol para ele fazer crescer a árvore de paina, na qual ela faria sua casinha para brincar. Naquele momento, porém não era o sol que a menina via, era a luz da lamparina que a febre mascarava.

A despeito do calor do sertão, do abafamento do quarto com dez viventes, do corpo em chamas da menina e da luz quente da lamparina aquela mãe sentia-se gelada. Principalmente o coração.

Seria a morte se aproximando?

Ainda de madrugada o pai saiu para o trabalho, não sabia definir o que era aquela sensação estar preso em casa estando livre no campo aberto. Era peso, era engasgo, era pensamento obsessivo, era querer olhar pra trás sem querer ver o que ali encontraria. Alguns poderiam dizer que era descaso, na verdade ele queria evitar o sentimento de impotência diante dos fatos, nem ao menos poderia dar a vida no lugar da menina. A fé deste homem era uma semente infértil.

A tia da menina saiu para buscar a benzedeira, com a cabeça cheia de pensamentos embora não conseguisse pensar em nada. Caminhou por horas até a casa da benzedeira que não estava. Soube a senhora benzedeira e parteira fora ajudar uma mãe a dar a luz. A tia pensou que era melhor fazer mais este esforço do que voltar para a casa e ver os olhos sem vida da irmã que refletia o futuro de sua caçula.

Chegando à casa da futura mãe, lá havia ansiedade pela vida. Uma comemoração com broa, biscoito de nata e leite aguardava as boa novas. Sem dificuldade não há alegria, a parteira disse que não poderia ir naquele momento que o parto seria difícil, já que parecia vir gêmeos. Soube pela tia que a menina de 5 anos em uma semana passou pelo processo de perda do apetite, apatia, desânimo, febre e prostração. A benzedeira que não podia dar assistência deu esperança através de uma simpatia: passar mel na testa da menina e cobrir com folha de palmeira. Quem teria mel em casa? Triste, porém disposta a não voltar sem solução a tia começou a bater de casa em casa na vizinhança...

Os irmãos da menina já estavam acordando, não entendiam muito bem o que estava acontecendo, por que a maninha não queria mais brincar? A mãe distribuiu as tarefas do dia, queria mantê-los ocupados para não responder perguntas. Sentia que se pensasse na palavra morte, a morte se materializaria. Preferia não pensar, para não acontecer. Desde que a menina adoeceu agiu assim. Mas estava tão difícil não pensar em morte... Primeiro olhou a bonequinha que há dias não brincava, depois olhou para aquele banquinho junto à mesa que há dias não se juntava á mesa. Pensava em ausência para não pensar em morte.

O pai sentiu sede. No justo momento da pausa ele viu os pássaros cuidando dos filhotes. Não tinha outra coisa a fazer voltou para casa, abraçou a esposa, nenhum dos dois ouraram chorar. Ele resolveu encomendar o caixão que só chegaria de barco dali a algumas horas.

Os irmãos sem dizer palavra com os pais ou entre si resolveram colher flores, por intuição pensaram que seria um bom momento.

A tia sentou na estrada e chorou. Falhou em encontrar mel. Voltaria pra casa com as mãos e a fé vazia. A menina estaria viva? Olhou para a saia florida e se lembrou dos lírios à beira do rio que tem um mel feito por pássaros. Quem sabe aquele mel daria alguns anos de vida? Ou daria mais tempo para procurar?

A mãe estava só com a sua querida caçula. As horas estavam se acabando afinal. Já não tinha mais forças para esperar, para driblar a falta de esperanças. Pegou a filha no colo, com respiração fraquinha. Merecia um último abraço. Merecia a última prece:

– Deus se for morrer, que morra. Se for viver, que viva!

Abraçou a menina com a força do amor de mãe, mas sem força nos braços. A menina soluçou num suspiro profundo, como se a vida fora devolvida, abriu os olhos e sorriu-lhe.

Naquele dia a menina olhou as flores e pensou que na sua casinha na paineira terá muitas flores e lírios do rio. O pai lhe disse que aquela caixa de madeira não poderia ser a caminha de suas bonecas, que voltaria pra cidade no dia seguinte. Na semana seguinte ela estava grata ao sol por ter feito sua paineira crescer. A mãe estava grata por ter sua família completa. Os irmãos gostavam de poder brincar com a menina, mas não agradeciam nada, ao contrário deixaram o pique-esconde com ela por várias vezes. E o pai estava grato por poder se preocupar em trazer o sustento pra casa.

2 comentários:

  1. Seu estilo é maravilhoso. Vc escreve de uma forma linda: Suave, profunda e internalista. É uma escritora nata. Acredite no seu talento! Deixe as árvores e filhos pro futuro, escreva logo um livro! O mundo tá precisando de mais palavras do que gente...rs
    Bjus,
    Marcos

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada :)
      Foi baseada na história da Zeneide.
      Adorei a sugestão, escrever o livro qto antes rsrs

      Excluir