domingo, 14 de agosto de 2011

Adultas e os sete pecados capitais - Inveja

Aurélio explica: Desejo violento de possuir o bem alheio.


Manchete:
Babá presa por torturar menor é linchada por populares ao comparecer a julgamento.

Boletim de ocorrência – histórico da ocorrência:
Empenhados pelo Copom comparecemos ao local onde em contato com a vítima, a menor L.A.M, acompanhada de seus pais que mostraram gravação em vídeo realizada duas horas antes, em presença da autora M.A.S, no qual exibe imagens de comprovada tortura contra a menor. A autora foi encaminhada a 7ᵃ DD sem oferecer resistência juntamente com o pai da menor e prova do flagrante.

Documento de identificação:
N° 102576 Emissão: 05/01/2008
Michele Aparecida Silva
Filiação: Selma Conceição Silva
Naturalidade: Sítio da Abadia – GO
Nascimento: 09/07/1991

Quando se viu sozinha na casa passou a mão delicadamente pelo lençol do berço, fechando os olhos, deu um sorriso. A criança ficara no andador, a princesinha da casa. Completamente alheia a sua função de babá subiu no berço e ali ficou deitada sentindo a pessoa mais feliz do mundo sonhando com os pôneis do móbile. O berço deu três estalos seguidos e o estrado quebrou. Com o barulho Lígia começou a chorar. Michele despertou do transe buscou cola instantânea na padaria e colou como pôde o estrado. Lígia se consolou sozinha.

Certo tempo depois Lígia estava mais magra, Michele contava aos pais que ela comia normalmente com muito apetite. Os pais nos dias de folga da babá comprovava o fato, a menina tomava quase um litro de leite por vez. O pediatra foi categórico: subnutrição! Mas Michele pouco se importava com esses detalhes. Nem mesmo se importava se sua carteira de trabalho ainda não foi assinada... Pensar o Direito não mudaria sua vida pra melhor, aliás até estragaria o sabor daquela mamadeira diária na parte da tarde. Ela não conseguia mensurar o prazer de tomar o leite na mamadeira, Lígia por sua vez conseguia relacionar aquela visão com a grande fome que sentiria até a noite.

Michele ainda fez mais. Pegou algumas fotos da família, cortou o rosto de Lígia e pegou suas fotos 3x4 e fez as substituições. Assim montou seu álbum com o dia de nascimento, batizado, visita dos avós, presentes, fotos registrando mês a mês o crescimento da pequenina, o primeiro aniversário... Lígia assistia tudo e quer por fome, quer por instinto infantil, comeu o próprio rosto nas fotos.

A babá gostava de brincar de boneca. E era nesse momento em que Lígia tinha um pouco de atenção. Afinal era uma das bonecas da família em que Michele era a mamãe. Era nesse momento em que Lígia tomava banho, era colocada para dormir – sem muito critério de hora e local, como é permitido nas brincadeiras. Lígia recebia a mesma atenção das demais. Ora era filhinha, ora irmãzinha.

No dia em que Lígia recebeu o primeiro ferimento foi numa dessas brincadeiras. Lígia pegou uma boneca e começou a bater nela. Michele não se conteve, bateu na menina também suas unhas marcaram a pele inocente.

Lígia nada tinha de fato seu. Os pais não a conhecia. Com um ano e três meses não falava nada. Para uma criança amor se prova com os sentidos. Seus brinquedos e confortos lhe garantia a inveja do ser humano com quem mais convivia. O mundo que conhecia com seus cinco sentidos se resumia na ausência.

Michele só era babá nos momentos em que os patrões estavam em casa. De tudo dava conta, mostrando muita alegria em estar ali. Reclamava que os pais da menina ficava muito pouco em casa e que a ausência prejudicaria o desenvolvimento da criança, como tinha visto num programa de Tv. Era verdade, sentia falta dos patrões. Amava vê-los em casa, embora ficasse muito irritada ao presenciar o carinho e cuidado com a menina. Para sentir-se aliviada, contava a si mesma histórias da sua infância. Infância muito melhor que a real.


Na sua identidade não consta pai declarado. A mãe trabalhava por dois. Da infância pobre que teve guardou o contraste dos contos de fadas com sua realidade. Aí resolveu acreditar que toda princesa passa por dificuldade antes de ter seu final feliz. No teatro da escola interpretou uma princesa, nunca se sentiu melhor.

Desde nova era discreta, ninguém sabia que se passava no seu mundo. Assim conforme combinado guardou segredo do encontro com aquele senhor que se apresentou como amigo do seu pai. Disse a ela seu pai a amava muito e que foi pra longe trabalhar. Mas que deixou com ele uma garrafinha mágica. Ele orientou Michele a escrever seus sonhos para o futuro, deixar na garrafa e entregar a ele uma semana depois, quando ele partiria em definitivo pra Amazônia. Ele levaria a garrafa e entregaria as princesas que cuidam dos rios e realizam desejos.

Michele escreveu que queria ser uma princesa. Desejou morar em uma bela casa com muitas bonecas. Pediu as princesas do rio que lhe permitisse conhecer gente importante como o Juiz Cabral que sempre doa doces para as crianças. E por fim pensou que não seria demais pedir que ela passasse na televisão, que sendo princesa todos conhecessem sua história.

A garrafa nunca foi lançada. O pai de Michele disfarçado de amigo do pai, não teve coragem de voltar e se despedir. Com o tempo a garrafa se perdeu.

Michele foi princesa no teatro da escola. Conseguiu morar numa casa linda cheia de bonecas trabalhando como babá. Ao ser presa conheceu juízes, promotores e advogados. Sua história passou na Tv. Porém muitos deixaram de conhecer sua história completa. Ela mesma perdeu o controle de sua história em algum momento quando deixou a inveja trocar o desejo de uma vida melhor pelo desejo de possuir o que era da menina.

E pensar que ela só desejava de verdade um final feliz.

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